domingo, 28 de setembro de 2014

TEMPO-AMPULHETA


__________________________________________________________________________ 
Cedo cedi ao mundo as madrugadas                      E à noite me entreguei em sombra.
Do mundo queria todas as utopias       Todas se perderam      Cinza na ruína dos dias.
______________________E assim, que fazer de mim?________________________
Apavora-me      O ruído das fontes      O marulhar das horas      O gotejar do tempo
Passando impassível                                                               Sem me olhar
Sem escutar meu grito                                           Sem tocar meu choro.
________________E assim, que fazer de mim?________________
A idade decompõe-se.               Fracções.                Instantes.
A memória                                               multiplica os dias.
Lugar semi-breve                          Marcado em mim.
O espaço-tempo                  converge e colapsa.
Sufoca-me                                 O Espaço.
Excede-me                  O tempo.
Não        sou        mais
que           um
ponto
.
S
              O
                                                         N
                  H
O
.
    .    
.
Como areia escorrem letras,
Estilhaços.  Versos de vidro e de aço.
Instável             O solo que sustem os dias.
Volátil               O chão que suporta os passos.
Este tempo que me torna               Palavra de pedra
Ânfora quebrada                                   Desalinhado linho.
E _____  s ____  t  ____  r ____ e  ____ m ____ e____  ç _____o.
Como se fosse tempo                                                Recém-chegado,
Como se fosse dor             Recém-nascida           Em permanentes águas.
Bago de uva sem rosa                                                            Meu corpo-urze.
Aro de fogo circular                                            Cingindo meu redundante pensar.
_______________________E assim, que fazer de mim?_________________________
____________________________________________________________________________ 


6 comentários:

  1. Um “clássico” teu. Um dos teus melhores de sempre. Um poema deslumbrante.
    A musicalidade do poema prende-se de tal forma na memória que mal começo a ler a primeira palavra de um dos seus versos, todas as outras afluem naturalmente e sinto-me a lê-lo, não no ecrã, mas directamente a partir da memória.

    ResponderEliminar
  2. Poucas vezes pude sentir um conceito, o Belo, deixar seu reino abstrato para se materializar. E tua pena, assim o fez, Mestre. Um poema que alia a profundidade do sentir com a exatidão da forma, só poderia nascer de ti, Poeta Grande. Realmente, magnifico! Muito grato, pela joia que tu destes a nós outros.
    Abraços.

    ResponderEliminar
  3. Os comentários anteriores, Filipe, dizem da minha estupefação ante o texto: belíssimo, tanto pelo conteúdo, quanto pela pluralidade de leituras, ainda pela forma: mais, pela consistência de ambas as partes da ampulheta, entre o sonho. Abraços. Pedro.

    ResponderEliminar
  4. Cedo chegaram os dias nublados
    A sombria sombra cortante
    As pesadas memórias
    E o sonho morre e nasce, Entre o tempo
    que é areia que escorre pelas mãos
    A fragilidade de um vidro caído
    A força do sonho, sempre

    Profundo tocante
    Graficamente magistral


    (este poema, foi dos teus primeiros que li e que me fez render absolutamente
    á tua escrita)

    Beijinho

    ResponderEliminar
  5. E assim se desenham letras com lábios principescos de sabor a baunilha.
    Porque a música é o silêncio de encontro ao peito.
    E o sonho, o respirar do poeta. O TEU respirar.

    Belíssimo entre as brumas da memória e o grafismo estrondoso. PoemARTE.
    Bjinhos

    ResponderEliminar
  6. Um poema no qual o sujeito poético disseca o seu eu emotivo, desencantado e sufocado por um tempo e espaço que o espartilham, que o estilhaçam, culminando num quase grito “ E assim, que fazer de mim?”.
    Uma mensagem belíssima, desenhada numa estrutura formando uma ampulheta, sendo que, na sua estreiteza, ao colocar a palavra sonho, remete para a dificuldade de, neste estado de desalento, ter ânimo para tal desiderato.
    Uma obra-prima, amigo Filipe!
    Meu beijo :)

    ResponderEliminar